Arte Pública - espaço aberto


Para quem não sabe, concluí a especialização em Semiótica e Artes Visuais há alguns anos, com um trabalho hercúleo de identificação de todos os objetos tridimensionais em espaços públicos no município de Belém à época, associado a uma discussão difícil para tentar entender o papel desses elementos, tão acessíveis e tão invisíveis em nossas cidades. Eu gosto de diálogos e, embora deseje muito a publicação desse texto (cujo título "Marcos do Tempo" e algumas de suas ideias foram trazidas para cá), creio que algumas discussões são tão dinâmicas que temo estar defasada no dia seguinte de sua publicação.
Por isso tenho gostado mais de escrever em redes sociais, abrindo às discussões que fervem no momento. Esse meu desejo pela sinceridade da comunicação, a fragilidade de quem se expõe publicamente, que pode se tornar ponto focal ou mictório: isso é o risco de estar na vida.
O conceito, o nome "Arte Pública" é recente, mas isso não significa que antes do nome a coisa não exista, como uma latência da ideia. Junto com o termo Arte Pública, a arte e o uso do espaço público também sofreram alterações. A configuração do espaço, a apropriação humana, as formas de intervenção e mesmo a relação entre público e privado, entre tantas outras coisas, mudaram substancialmente, especialmente após o século XIX.
Não quero nem vou ser professoral aqui - gosto mais de discussões que verdades, tão enfadonhas - assim como nunca quis ter esse estereótipo e, por isso, tanto me irrita quem também queira impor visões limitadoras sobre qualquer coisa: se eu puder ampliar o caos de ideias, fico mais confortável. Quando é um tema sobre o qual eu tenho conhecimento; nunca me furto a abrir janelas, ainda mais quando conhecemos os ambiente e o mal estar que pode se tornar o ar asfixiado de ideias reducionistas.
A liberdade pela liberdade é uma prisão e Arte Contemporânea mal compreendida é um rótulo como qualquer outro, tão pequeno como qualquer outro. Quem acredita que o infinito é grande, não tem noção de quantos infinitos cabem em cada um.
Por isso puxei algumas considerações de um diálogo que tive esses dias numa página do Facebook que tentarei trazer para cá e convido à discussão.

Intervenção urbana: tudo que se faz na cidade, em sentido pleno, é uma intervenção urbana, porém, se não há intencionalidade artística, é temerário ser considerada como arte. Um gesto é um gesto e se completa no olhar de quem o vê. A apropriação estética de um objeto lhe dá o caráter de interpretação plástica pelo receptor, mas mesmo assim continuará, o objeto, tendo sua função precípua, não necessariamente como uma obra de arte. 
O objeto efêmero: uma barraca de camelô é efêmera, mas é um objeto utilitário e funcional, não foi inserido no espaço com uma intenção artística, portanto não é em si uma obra de arte. O olhar sobre o objeto, sua ressignificação, isso sim, pode ter caráter artístico. O objeto efêmero é uma potência transitória, aberto a significar ou passar no tempo. Emmanuel Nassar e Luiz Braga souberam se apropriar, cada um sob sua forma de expressão, dessa linguagem do efêmero e traduzi-lo em suas obras, mas qualquer um pode apreciar o efêmero e dotá-lo de sentido estético, sem necessariamente transformá-lo em uma obra de arte ou outra coisa qualquer. 
Valor estético e valor artístico: podemos atribuir valor estético a tudo, mas não podemos atribuir intenção artística. A intenção artística está associada ao desejo de fazer: tudo na vida tem que ser motivado por algo, assim como a arte. Intenção artística e valor artístico não são sinônimos. Quem atribui o título de artista ou não-artista? Não podemos ser levianos em afirmar que há arte em tudo e, na contramão do discurso da "morte da arte", sacralizar tudo como fazer artístico. Nem a arte nem o artista tem fronteira definida, mas certamente o "fiat" [o fazer] faz a diferença.  
Simulacro e dissimulação: simulacro é algo bem diferente de dissimulação e o fundamento dessa diferença está na verdade do fazer, da intenção desse fazer. O simulacro é consequência da modernidade que Baudrillard discutiu e rediscutiu. No ato criativo não devemos reproduzir nada (nem estética vernácula, nem discurso, salvo o desejo de ter na reprodução a sua intenção) sem constante revisão. Racionalizar demais o fazer faz com que vejamos a arte com o lado oposto do cérebro. 
Arte: é fazer e conceito: arte é um conceito em si, uma denominação cultural, nem sempre necessária e que muitas vezes traz um peso desnecessário. Não me esqueço de uma fala de uma entrevistada do meu marido que, quando questionada se ela sabia que o que ela fazia era patrimônio, ela respondeu "não, é cesto". Ela não fazia arte? A quem interessava de fato saber se o que ela fazia era ou não arte?
A arte é um valor, um consenso cultural de determinado grupo social, que atribui a isso ou aquilo, de forma explícita ou implícita esse atributo. Qualquer um é capaz de fazer o que quiser, tanto arte quanto não-arte - ou algo que possa ter outro nome (e não há nada mais contemporâneo que essa liberdade do fazer).
A arte é um valor, um consenso cultural de determinado grupo social, que atribui a isso ou aquilo, de forma explícita ou implícita esse atributo. Qualquer um é capaz de fazer o que quiser, tanto arte quanto não-arte - ou algo que possa ter outro nome (e não há nada mais contemporâneo que essa liberdade do fazer).  
Capacidades humanas: o fazer é humano, graças aos cérebro e um maldito polegar opositor que permite ao homem ser o único animal capaz de destruir e reconstruir o próprio mundo. Nominar também é atributo humano; é uma capacidade desse bichinho de cérebro grande e dedo torto que vaga pelo planeta... 
Cultura x Natura: é uma oposição primária e muitos da área de antropologia me crucificariam agora, mas essa oposição é oportuna para entender a relação entre o efêmero, o estético e a intervenção como Arte Pública ou não. Pensemos nessa analogia: uma folha caída no outono, um por de sol, teriam valor estético incontestáveis, caráter efêmero, e se constituiriam intervenções espaciais, mas seriam arte no sentido cultural do termo. Certamente não: não tiveram a mão humana, o fazer, a intencionalidade. Mas se alguém apreciar e vir nesses fatos valor estéticos, irá atribuir à intervenção humana do olhar e poderá dizer "nossa, essa folha é uma obra de arte". Da mesma forma qualquer outro fato, humano ou natural. Sim, podemos achar no grotesco atributo artístico. Experiência estética e experiência artística não são sinônimos. 
Elitização da arte: no caminho de um consenso coletivo sobre a arte, muitos rótulos foram sendo produzidos, elitizando o domínio deste território. Sabemos que, o que vem sendo chamado de arte, sempre foi utilizado pelas elites para demarcar a diferença entre o erudito e o popular, entre o primitivo e o moderno e assim por diante. O discurso elitista colonizador europeu, teve como pressuposto este grau elevado do espírito humano para dizimar comunidades inteiras de indígenas, classificando-os simplesmente como seres exóticos e sem alma, sob o prisma de um discurso evolucionista. Isso foi muito útil para quem saiu ganhando e péssimo os subjugados. E se os povos pré-colombianos tivessem ganhado a guerra, de que lado estaria o domínio das regras? Entender isso, de que lado está o discurso nos permite também entender que podemos estar do outro lado da fronteira, não necessariamente fazendo um embate ressentido, mas permitindo-nos escolhas estéticas e culturais. E citei apenas um recorte temporal (o da colonização): quantos embates, fronteiras e territórios não foram delimitados e se sobrepõem na cidade, no espaço público? O discurso de elitização da arte é muito cômodo a quem não quer buscar reconhecer o seu espaço no mundo e se contenta com o discurso fácil de oposição por mera oposição. 
Sentido da arte: se a palavra "cadeira" pode ser construída como imagem diferentemente na cabeça de cada um, de acordo com suas experiências, que se dirá a palavra "arte"! "Artista" e "arte" são substantivos, não adjetivos que traduzem atributo específico e de construção cultural, portanto coletivos e, por consequência, complexos, dinâmicos, sistêmicos e dependentes de inúmeras variáveis.  
O fazer artístico: os povos indígenas não constroem seus objetos com função artística precípua, mas atribuem-lhe valor realmente significante para a sua realidade cultural. Certamente não são só artistas que produzem arte, até porque a compreensão cultural é variável no tempo e no espaço: o que hoje pode ser chamado de arte, amanhã poderá não ter valor e vice-versa, muito embora tenha havido intencionalidade no seu fazer artístico, porém tenha perdido seu valor cultural, o que se chamaria de um atributo artístico para a sua sociedade. 
O cotidiano, o habitual e a arte pública: quando eu digo "intencionalidade", não tem nenhum peso de racionalidade nisso: em alguns estudos de antropologia, e especialmente de etnocenologia, o cotidiano é o habitual (teatralidade), o extra-cotidiano (espetacularidade), isso é, aquilo que visa ser observado, sendo que o espetacular pode estar na visão do observador. Encontramos aí consonância com a tese da obra aberta do Humberto Eco. Aceitando-se a multiplicidade e a indeterminação das estéticas contemporâneas, podemos aproximar essa discussão com a Arte Pública e vamos entender que temos fatos estéticos que se manifestam no cotidiano e que tem esse dual, sendo que a espetacularidade (que seria o que atribuiríamos o nome de "arte pública", quer uma instalação, escultura ou qualquer tipo de performance) não necessariamente é produção de um "artista" visto que pode se completar no olhar de quem vê.
Quando tratamos de uma intervenção em espaço público, construtiva ou destrutiva, necessariamente traz em si intencionalidade, às vezes nem tão clara e explícita (muitas vezes subconsciente ou mesmo certo "pacto social"), portanto cultural.

A dificuldade de se conceituar a Arte Pública faz com que alguns optem pelo discurso fácil de que qualquer coisa a seja. Ao se estabelecer academicamente uma discussão, temos que tentar entender seus limites e aberturas. Não creio que haja qualquer conceito fechado, mas o exercício do livre pensar, necessário a qualquer construção intelectual. "Todo ponto de vista é a vista de um ponto" e isso é uma visão historicista que, necessariamente, toda ação humana está atrelada: fazemos história, modificamos o mundo a cada gesto. E os gestos do passado são marcos daquele tempo (por sua relação com o seu tempo) assim como os gestos contemporâneos refletem este tempo atual, e da mesma forma as várias leituras possíveis dos marcos passados nos tempos que se seguiram. O conceito de arte pública pode ser do nosso século (ou do anterior), mas todos os nomes vêm depois das coisas, nunca ao contrário.

Reduzir uma conceituação acadêmica de arte pública ao recorte do modernismo com objetivo de embelezamento de espaços públicos ou de intervenção contemporânea de caráter efêmero é muito pouco e, a mim, não satisfaz.

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