O calçamento de Belém

História das calçadas

“O calçamento de Belém pode ser observado sob dois aspectos: o primeiro se refere ao leito da rua, destinado aos veículos e o segundo às calçadas para uso de pedestres. Desde o século XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira faz referência em sua “viagem Filosófica”, aos logradouros enlameados da sede da colônia, quer no centro como no distante “bairro da Campina”. Lama sujeira no inverno; poeira e desconforto no verão”. O ilustre naturalista baiano cita, na oportunidade, o sistema de vida do paraense, em Belém, com suas casas fachadas, unidas, de poucas janelas, brancas e corridas nas artérias principais da capital dá-nos uma precisa idéia da vida urbana da civilizada Belém dos setecentos, contando já nesse tempo, com as obras majestosas de Landi. Mas as ruas em lamentável estado, levariam o eminente cientista a pinta-las dolorosamente encharcas e prejudiciais aos “foros” de progresso que a obra do Bolonhês deveria inspirar ao visitante.
Dos idos do Presidente da Província Miguel Antonio Pinto Guimarães – o Barão de Santarém - notícias de pavimentação da primeira artéria da Campina beneficiada com esse melhoramento: a “Rua Formosa” – hoje 13 de maio. Recebe pavimentação em pedra escura lascada, rejuntada, à moda da época. Antes apenas algumas ruas e travessas da cidade velha possuíam idêntico serviço, certamente, com a aplicação dessa pedra preta abundante em torno de Belém, (espécie de laterite) resistente ao uso de animais e pequenos veículos, coches, tilburys, carruagens, etc. Mais tarde, no Império, a pavimentação das calçadas de Belém tornaria vulto. Nessa parte, desde os tempos da cabanagem há notícias de pedra de cantaria, vinda de Portugal, que serviria para o preparo das pequenas vias de acesso público na velha cidade, seguindo normas ainda mais antigas de importação desse material português para esse fim e a outros, de caráter ornamental. Recorde-se encomendas de Landi, em Lisboa, de Pedra Lioz, cantaria lusa, para a entrada nobre do templo carmelita. De Portugal – a pedra granítica que serviria de lastro de embarcações, caravelas e navios de maior porte, todos a vela, que trariam do Ocidente, o precioso material, todo ele destinado à pavimentação de Belém. Esse fato ocorreu em todo o país. Entre nós, com maior freqüência, haja vista a imensidade de meios-fios, de pedra lavrada e polida que Belém ainda agora ostenta aos olhos das novas gerações. A Cidade Velha e o novo bairro do Comércio, além das áreas distantes àquela época, do centro de Belém fixado na praça da Matriz (Sé), receberiam esse processo de pavimentação em suas calçadas. Secular, maravilhoso, resistente e raro noutras partes interioranas do país. Vejam-se a Avenida 16 de novembro e todo o bairro central de Belém, a Avenida Nazaré e quantas mais ainda mostram sua pavimentação primitiva.
Com o correr dos anos, o mesmo processo utilizou-se para o leito das ruas, aplicando granito em paralelepípedos, importados de Portugal, do sul do Brasil e sobretudo do nordeste. Há muitas referências a esse respeito nos relatórios e antigos documentos da vida paraense no período do Império e já na República. Assim, na Cidade Velha, na Campina e em quase todos os pontos urbanos, Belém ganharia essa pavimentação, digna de merecimento e difundida em toda parte. Resistente e de fácil aplicação. Infelizmente, pela natureza do solo da cidade, sua duração não seria tão perfeita como ocorre, como ocorre, por exemplo nas capitais nordestinas, fixadas em terrenos super-sólidos. Contudo, o paralelepípedo, de maneira satisfatória, viria coroar a pavimentação de Belém no século XIX e neste.
Ao que saibamos, foi no governo municipal de Lemos que tentou-se fixar em Belém um tipo de pavimentação em peças de borracha para isso preparadas e que ainda houve sua aplicação nas áreas do Largo da Pólvora. Também a Lemos, a par da enorme pavimentação feita em sua gestão de paralelepípedos, deve-se o acabamento em torno do Teatro da Paz, com blocos de concreto-artístico, também utilizado na entrada do edifício do colégio “Gentil Bittencourt”, obra de Montenegro. Na administração Faciola, executou-se a experiência de asfalto sobre granito britado, na Av. Serzedelo Corrêa, com pleno êxito, perfeito e duradouro.
Quanto às calçadas, (o sistema primitivo) foi o emprego de Pedra Lióz, oriunda de Portugal. Tempo houve em que a cidade recebeu ladrilhos de cimento colorido, permitindo uma boa visão da cidade. Isso ocorreu com freqüência a partir de Lemos e em seu tempo. Antes e depois de 1930 desse tipo muito se faria Belém, principalmente, nas artérias mais nobres da urbe. Recordamos a Avenida 15 de Agosto, a Serzedêlo Corrêa, a São Braz e muitas outras. No Largo da Pólvora, sua caixa externa, circular, perimetral sempre a conhecer de cimento com juntas. Apenas internamente, possui, como possui ainda, locais ornamentados de ladrilhos hidráulicos. Nesse metier, Faciola aplicou no Largo do Relógio pedra branca (quartzo) e preta (feldspato), acreditamos nós, para pavimentar o largo, imitando o sistema de Copacabana. Igualmente, há pouco tempo, repetiríamos o fato, no pequeno monumento a “Lauro Sodré”, feito na gestão Barata (última) pelo engº Nicolas Chase, vimos a Av. Independência em cimento rejuntado;
Nazaré, com sua cantina magnífica, também completa, desse material do Largo da Pólvora à Basílica. São Jerônimo e todas as suas transversais, em cimento, com meio fio de Lioz. O comércio que se honrava em suas calçadas de cantaria portuguesa tem sido barbaramente mutilado, com substituição de material praticamente eterno, para outro de fabricação hidráulica, sem resistência comparável à cantaria. Um verdadeiro pandemônio na pavimentação central de Belém, onde cada proprietário se julga com direitos de opinar sobre um assunto que é da alçada exclusiva da prefeitura e de quem sabe ler... A velha João Alfredo e muitas de suas artérias ortogonais, velha tradição que enriquecia nossa cultura e nossa história tem sido estupidamente modificada, dessa forma. Na Cidade Velha, pedras seculares históricas, muitas das quais ainda marcam o sacrifício de nossos heróis, as pegadas dos missionários, o brado naturalista de reação à supremacia da força, que ouviram e assistiram as fases gloriosas de nossa emancipação política, acreditaram nos sermões de Vieira, no ardor de Teixeira, na voz dos cabanos libertos, nas palavras santas da igreja em horas trágicas de nossa formação, são removidas, absurdamente, quando não, cobertas, de cal e cimento, no mais triste testemunho de ignorância e falta de respeito ao nosso passado. Mas, que fazer? Isso, hoje é um mal nacional. Parece existir uma guerra surda, subterrânea, inimiga do país, pretendendo aniquilar a cultura brasileira em suas raízes... grita-se em Ouro Preto, grita-se no Maranhão, grita-se na Bahia, grita-se em toda parte e, aos poucos, esse grupo malsinado e hostil, cai em cima de nossas riquezas e ninguém encontra eco em nossos reclamos.
Belém é o maior atestado de cidade saqueada, no sentido exato do termo. Há muitos anos vem sendo destruída, roubada, mutilada, desgraçadamente inutilizada no que possuía de mais belo, herdado dos avós. Ninguém respeita nada. Leis são postas de lado. Posturas e regulamentos, aquecidos. Restam, sem qualquer vigência que interesse a comunidade. É isso... a paisagem desoladora do Brasil que avança para o futuro, sem “memória nacional”.
Estamos cansados dessa luta. Luta inglória contra tudo, e contra todos. Não há jeito para o mal. É pior que o câncer, a malária e a filariose, a doença de insensibilidade coletiva. E esta domina o Brasil de norte e sul, mais forte do que a morte, como o disse o poeta...
Belém precisa, em última instância, resguardar-se de inovações impróprias a seu meio. Esta é uma cidade de inspiração colonial-lusa. Cresceu sob esse prisma. Em suas áreas tradicionais e monumentais, há que se respeitar o “acervo histórico” e arquitetural. Nada de inovações em sua fisionomia séria e estável, em que Lemos fixou para a grandeza a sua história.Há novos bairros, novos logradouros que merecem sua mensagem de agora, de modernismo e avanço. Mas que isso o seja, também, com habilidade e bom gosto. Há beleza no canto-chão dos monges benedetinos que não é diferente da beleza das composições contemporâneas. O que é preciso observar, é o “ambiente” em que cada uma sustenta sua nobreza e seu sentido estético.
Cuidado, muito cuidado, na aplicação de inovações urbanísticas em locais da cidade que deverão ser mantidos e respeitados em sua estrutura e idade. Nada de querer vestir “pai-noel” de biquínis e sungas. A cada um o seu lugar e tudo andará certo. Cuidado, muito cuidado para não trocar a autoridade que Belém sempre desfrutou no país mesmo desfigurada através dos anos – por uma nova ignorância cafona, só compatível com a ignorância e a insensibilidade que dominam os espíritos que não a estudaram, não a sentiram, não a querem senão para desmoraliza-la e desmerecê-la.
Finalmente, para o leito das suas principais e, depois, das subsidiárias, à época da administração de Moura de Carvalho foi aplicado o sistema em sand-asphalt, iniciado na praça da República. Posteriormente, o serviço aprovado sob olhar do gestor e de seus auxiliares diretos, irradiou-se por toda cidade. Aproveitando o velho leito em paralelepípedos, aplicado em mais de um século, garantindo a base e a sub-base do “grade”, facilmente Belém tornaria outra fisionomia. Hoje, poças ruas centrais e algumas dos subúrbios distantes, guardam esse tipo de revestimento. Antes, houve um preparo, com pintura asfástica, simples impermeabilização para garantir os aterros de piçarra e evita poeira e lama. Depois, o “sand” tomou conta de tudo. Pinheiro, Mosqueiro, arredores de Belém estão otimamente pavimentadas. Até cidades do interior se beneficiaram co a nova ordem. A perfeição desse tipo de pavimentação, traria, certamente, o contraste, remediável, com a situação triste e precária das calçadas de Belém.
Serviços públicos, indispensáveis ao nosso progresso abriram as ruas, sacrificando a beleza antiga do calçamento, nunca por culpa de seus promotores mas, principalmente, pelo trabalho incompleto e mal feito de empreiteiros que, mal fiscalizados, reporiam o pavimento erradamente. O melhor exemplo é o que fizeram com as Lages de cantaria da Av. Nazareth.
Ontem, uma das coisas belas desta terra. Admiradas pelo visitante e estranhadas pelo olhar desconfiado de muita gente que mal acreditaria ver uma artéria inteira revestida de lióz importado de Portugal. A reposição absurda dos lajedos, sem gosto, sem arte, sem o mínimo interesse de efetuar serviço correto, daria esse aspecto desolador em que se encontra a principal avenida de Belém.
São todos esses fatos que precisam ser pensados e passados, antes de qualquer planejamento nesse sentido. Retirar pavimento seguro, eterno, histórico, primoroso, para colocar pavimentos futuristas aonde Belém perde dignidade e respeito, só mesmo desacreditando da tradição e da cultura entre nós. Por isso afirmamos, sem medo de errar, que não acreditamos em qualquer medida contrária aos pontos de vista que aqui defendemos. Fala-se muita coisa, porém a realidade é outra. Há muito onde se aplicar recursos municipais na área imensa das léguas patrimoniais de Belém e em seus dois distritos: Icoaraci e Mosqueiro.
Nenhum gestor gastaria dinheiro (por si só reduzido) em tocar no que está feito, ontem otimamente executado, para despender gordas somas enfeiando e traindo as nossas tradições da cidade culta. Estamos tranqüilos, nesse ponto e não será sem o justo revide de quem de direito, a quem e sem fundamento artístico ou técnico. Nossa cidade, embora saqueada vilmente, ainda não está “a venda” em hasta pública ao sabor de interesses escusos, muitas vezes, inconfessáveis.”


Augusto Meira Filho
Artigo publicado no Jornal O Liberal - Belém, 17 de outubro de 1976, p.2, 2º caderno.

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